quinta-feira, 28 de abril de 2016

Sonho de uma Flauta

— Toma — Disse meu pai, e entregou-me uma pequena flauta de osso — leva isso e não esqueças teu velho pai. Quando alegrares com tua música as pessoas nas terras distantes. Já é tempo de, agora, veres o mundo e aprenderes alguma coisa. Mandei fazer a flauta para ti, porque não sabes mesmo nenhum outro ofício e só gostas de cantar. Mas pensa também em só tocar sempre canções bonitas e agradáveis, senão seria pena pelo dom que Deus te concedeu. Meu querido pai entendia pouco de música, era um sábio; pensava que eu tinha apenas de soprar a linda flautinha e tudo estaria bem. Eu não queria dececioná-lo, por isso agradeci, botei a flauta no bolso e despedi-me.
Nosso vale me era conhecido até o grande moinho; depois então começava o mundo, e ele agradou-me bastante. Uma abelha cansada do voo pousou na minha manga, e eu levei-a comigo, a fim de que no meu primeiro descanso tivesse um mensageiro para mandar de volta, como um cumprimento à minha terra. Bosques e prados acompanhavam meu caminho, e o rio corria junto, vigorosamente; eu vi. O mundo diferia pouco da minha terra. As árvores e flores, as espigas de trigo e as moitas de avelã falavam comigo, cantei com elas suas canções e elas compreendiam-me, exatamente como lá em casa; com isso minha abelha também despertou, subiu devagar até meus ombros, voou e tornou a cruzar duas vezes comigo, com seu zumbido profundo e doce, e então voltou para a minha terra. Aí apareceu diante do bosque uma mocinha, que carregava uma cesta no braço e um largo e sombrio chapéu de palha na cabeça loura.
— Bom dia — disse-lhe eu — aonde vais?
— Devo levar a comida aos ceifeiros — disse ela, e caminhou ao meu lado. — E para onde queres ir ainda hoje?
— Vou para o mundo, meu pai mandou-me. Ele acha que devo tocar a flauta para as pessoas, mas isso ainda não sei direito, preciso primeiro aprender.
— Bem, bem. E que sabes então direito? Alguma coisa é preciso saber.
— Nada de especial. Sei cantar canções.
— Que canções? — Canções de todo tipo, sabes, para a manhã e para a tarde e para todas as árvores e bichos e flores. Agora, por exemplo, eu poderia cantar uma bonita canção de uma mocinha que vem saindo do bosque e traz comida para os ceifeiros.
 Podes fazer isso? Então canta um pouco!
— Sim, mas como te chamas mesmo? — Brigite.
Então cantei a canção da linda Brigite com o chapéu de palha, o que ela traz na cesta, e como as flores olham para ela, e a trepadeira azul da grade do jardim sente saudades dela, e tudo o que se podia dizer. Ela prestou atenção seriamente e disse que estava bom. E quando lhe contei que estava com fome, ela levantou a tampa de sua cesta e deu-me um pedaço de pão. Como mordi um pedaço e continuei firmemente a andar, ela disse:
— Não se deve comer andando. Uma coisa depois da outra.
Sentámo-nos na erva, eu comi o meu pão e ela cruzou as mãos morenas em volta da perna e ficou a olhar-me.
— Queres cantar ainda alguma coisa para mim? — perguntou, então, quando terminei.
— Quero sim. Que deve ser?
— Sobre uma moça que está triste porque o amado partiu.
— Não, isso não posso. Não sei como é isso, e a gente também não deve ficar tão triste. Eu só devo cantar canções gentis e alegres, disse meu pai. Vou cantar para ti sobre o cuco ou a borboleta.
— E do amor não sabes nada? — perguntou ela, então.
— Do amor? Ora claro, isso é o mais bonito de tudo. Imediatamente comecei a cantar sobre o raio de sol que ama as papoulas vermelhas e como ele brinca com elas e fica cheio de alegria. E sobre a fêmea do tentilhão, quando espera por ele e quando ele vem, ela voa para longe e parece amedrontada. E continuei a cantar sobre a menina dos olhos castanhos e sobre o rapaz que chega, canta e por isso recebe um pão de presente; mas agora ele não quer mais pão, ele quer um beijo da donzela e quer olhar os seus olhos castanhos, e continua a cantar tanto tempo e não termina, até que ela começa a rir e lhe fecha a boca com seus lábios. Aí Brigite debruçou-se e fechou-me a boca com os lábios e fechou os olhos e tornou a abri-los e eu olhei as estrelas castanho-douradas bem perto, eu próprio estava refletido ali dentro e um par de brancas flores do prado também.
— O mundo é muito bonito — disse eu — meu pai tinha razão. Mas agora quero ajudar-te a carregar isso para que cheguemos até tua gente. Tomei-lhe a cesta e continuámos a andar, seu passo combinava com o meu e sua alegria com a minha, e o bosque suave e fresco falava da montanha em volta; eu nunca havia caminhado com um prazer tão grande. Durante longo tempo cantei alegremente, até que tive de parar de tanta satisfação; eram coisas demais que rumorejavam  sobre o vale e a montanha e a erva e a folhagem e o rio e a floresta. Aí pensei: se pudesse compreender e cantar ao mesmo tempo essas mil canções do mundo, das ervas e flores e gente e nuvens e tudo, da floresta velha e do pinheiral e também de todos os bichos, e além disso ainda canções dos mares longínquos e montanhas, e as das estrelas e luas, e se tudo isso pudesse ressoar e cantar em mim ao mesmo tempo, então eu seria o querido Deus, e cada nova canção deveria ficar no céu como uma estrela. Mas enquanto eu assim pensava, e estava silencioso e maravilhado, porque aquilo antes nunca me ocorrera, Brigite parou e segurou a alça da cesta.
— Agora devo ir lá em cima — disse ela — lá no campo está nossa gente. E tu, para onde vais? Vens comigo?
— Não, ir contigo não posso. Preciso ir pelo mundo. Obrigado pelo pão, Brigite, e pelo beijo; vou pensar em ti.
Ela segurou a cesta de comida, e sobre a cesta seus olhos novamente se inclinaram para mim em sombras castanhas, e seus lábios prenderam-se aos meus e seu beijo foi tão bom e carinhoso, que quase fiquei triste de tanto prazer. Então gritei rápido — vai com  Deus — e marchei apressadamente pela estrada acima. A moça subiu devagar a montanha, e sob as folhas de faia penduradas na orla do bosque, parou e olhou na minha direção e quando lhe acenei com o chapéu, ela tornou a balançar a cabeça e desapareceu silenciosamente, como uma miragem, para dentro da sombra do bosque. Eu, porém, continuei tranquilamente meu caminho, e estava imerso em meus pensamentos, quando a estrada dobrou numa curva. Lá havia um moinho e, perto, um barco na água; dentro estava sentado um homem sozinho e parecia apenas esperar por mim, pois quando tirei o chapéu e entrei no barco, este, em seguida, começou a andar e deslizou rio abaixo. Eu estava sentado no meio do barco, e o homem atrás, no leme, e quando lhe perguntei para onde íamos, ele levantou os olhos cinzentos e encarou-me com um olhar velado.
— Para onde quiseres — disse, com uma voz abafada. — Rio abaixo e para o mar, ou para as grandes cidades, podes escolher. Tudo me pertence.
— Tudo te pertence? Então és o rei?
— Talvez — disse ele.
— E tu és um poeta, parece-me? Então canta-me uma canção de viagem!
Fiz um esforço, estava com medo do homem grisalho e sério, e nosso barco deslizava rápido e silencioso pelo rio. Cantei sobre o rio, que carrega o barco e reflete o sol e rumoreja mais forte nas margens dos rochedos e completa alegremente seu passeio. O rosto do homem continuou impassível, e quando prestei atenção, ele balançava a cabeça como um sonhador. Então, para meu espanto, ele próprio começou a cantar, e também cantava sobre o rio, e sobre a viagem do rio através dos vales, e sua canção era mais bela e poderosa que a minha, mas tudo soava diferente. O rio, tal como ele o cantava, vinha como um destruidor vacilante pela montanha abaixo, escuro e selvagem; furioso, ele se sentia dominado pelos moinhos, coberto pelas pontes, detestava cada navio que precisava carregar, e em suas ondas e nas longas e verdes plantas aquáticas, rindo balançava os corpos brancos dos afogados. Isso tudo não me agradou, e entretanto era tão belo e cheio de um acento invisível, que fiquei completamente desorientado e angustiado e me calei. Se era certo o que esse velho, sensível e inteligente cantor, cantou com sua voz velada, então todas as minhas cantigas não passavam de tolices e brincadeiras bobas de criança. Então o mundo, por causa delas, não era bom e luminoso como o coração de Deus, e sim escuro e triste, mau e sombrio, e quando os bosques murmuravam, não era de alegria, e sim de martírio. Seguimos adiante, e as sombras foram longas, e de cada vez que comecei a cantar, meu canto soava menos claro, e minha voz tornava-se mais baixa, e de cada vez o cantor desconhecido respondia com uma canção que tornava o mundo ainda mais enigmático e penoso, e me tornava ainda mais tímido e triste. Minh'alma doía e eu me arrependia de não ter ficado na terra, perto das flores ou da linda Brigite, e para me sentir seguro no crepúsculo que crescia, recomecei a cantar e cantei na luz vermelha da tarde a canção de Brigite e de seu beijo. Aí o crepúsculo começou, e eu emudeci, e o homem no leme cantou, e ele também cantava sobre o amor e a alegria do amor, sobre olhos castanhos e azuis, sobre lábios vermelhos e húmidos, e era lindo o que ele cantava, cheio de dor, sobre o rio escurecido, mas em sua canção também o amor se tornara sombrio e temível, e um segredo mortal, no qual os homens aflitos e feridos tocavam com seu desejo e sua saudade, e com o qual se martirizavam e se matavam uns aos outros. Escutei e fiquei tão cansado e aflito, como se já estivesse viajando desde muito tempo e houvesse passado por grande miséria e desgraça. Vinda do estranho, sentia cair sobre mim uma torrente silenciosa e fria de tristeza e receio, a penetrar no meu coração.
— Pois bem, a vida não é o que há de mais elevado e mais belo — gritei afinal amargamente — e sim a morte. Então peço-te, rei triste, canta-me uma canção da morte!
O homem no leme cantou somente sobre a morte, e cantou melhor do que eu jamais ouvira cantar. Mas a morte também não era o que havia de mais elevado e mais belo, nela também não se encontrava consolo. A morte era vida e a vida era morte, e elas estavam entrelaçadas numa perpétua e furiosa luta de amor, e isso era a última coisa e o sentido do mundo, e dali vinha um clarão, que parecia querer valorizar toda miséria, e de outro lado vinha uma sombra que perturbava toda alegria e beleza e as envolvia na escuridão. Mas para além da escuridão, a alegria ardia mais íntima e bela, e o amor queimava mais profundamente nessa noite. Escutei e fiquei bem quieto, não tinha mais nenhuma vontade dentro de mim além da vontade do estranho. Seu olhar repousou sobre mim, tranquilo e com uma certa bondade triste, e seus olhos cinzentos estavam cheios da dor e da beleza do mundo. Ele sorriu-me, e então achei nele um coração, e pedi na minha dor:
— Ah, vamos voltar! Sinto medo aqui na noite e queria retornar para onde posso encontrar Brigite, ou para a casa de meu pai.
O homem levantou-se e espiou a noite, e sua lanterna iluminou claramente seu rosto magro e firme.
— Para trás não há caminho — disse sério e amável — a gente precisa ir sempre para frente, quando quer penetrar o mundo. E da garota dos olhos castanhos já tiveste o melhor e o mais belo, e quanto mais longe estiveres dela, melhor e mais lindo isso se vai tornar. Ainda assim, segue sempre para onde quiseres, vou-te ceder meu lugar no leme! Eu estava triste demais, e, entretanto, vi que ele tinha razão. Cheio de saudade pensei em Brigite e na minha terra e em tudo que me fora próximo e luminoso e que me pertencera, e que eu agora havia perdido. Mas queria tomar o lugar do desconhecido e dirigir o leme. Assim devia ser. Por isso levantei-me em silêncio e fui andando pelo barco até o lugar do leme, e o homem veio em silêncio ao meu encontro e quando já estávamos perto um do outro, olhou-me firmemente no rosto e entregou-me sua lanterna. Entretanto, quando me sentei ao leme com a lanterna do meu lado, estava sozinho no barco; percebi isso com profundo horror, o homem desaparecera, e, contudo, eu não estava amedrontado, já pressentira isso. Pareceu-me que o lindo dia da caminhada e Brigite e meu pai e minha terra tinham sido apenas um sonho, e que eu era velho e aflito, e que desde sempre e sempre viajava sobre esse rio noturno. Compreendi que não devia chamar pelo homem e a perceção da verdade atingiu-me como a geada. Para me certificar do que imaginava, debrucei-me sobre a água e ergui a lanterna, e do escuro espelho de água um rosto duro e sério me olhou com olhos cinzentos, um rosto velho, sábio e vi que aquele era eu. E como nenhum caminho voltava atrás, continuei seguindo sobre a água escura dentro da noite.

Hermann Hesse, in Sonho de uma flauta e outros contos



Bibliografia de Hermann Hesse


         Hermann Hesse procurou construir sua própria filosofia, a partir da sua revolta pessoal (Peter Camenzind, 1904) e da sua própria interpretação das correntes filosóficas do Oriente (Sidarta) em especial OU.
        
             O jogo das contas de vidro foi o último romance de Hesse. Durante os últimos vinte anos de sua vida, Hesse escreveu muitos contos (principalmente lembranças de sua infância) e poemas (frequentemente tendo a natureza como tema). Hesse escreveu também ensaios irónicos, por exemplo, as autobiografias simuladas: História da vida resumidamente dita e Aus den Briefwechseln eines Dichters) e passou muito tempo desenvolvendo o seu interesse por aguarelas, cujas reproduções enviava em postais aos amigos.
         Hermann Hesse também se ocupou com o fluxo constante de cartas que recebeu como resultado do Prémio Nobel, e com uma nova geração de leitores alemães que se reviam no seu trabalho. Num ensaio, Hesse reflete ironicamente sobre sua falha ao longo da vida para adquirir um talento para a ociosidade, especulando-se que sua correspondência média diária foi superior a 150 páginas.

Obra:

  • 1898 Canções românticas
  • 1899 Eine Stunde hinter Mitternacht
  • 1903 Peter Camenzind, romance
  • 1904 Bocaccio, biografia
  • 1904 Francisco de Assis, biografia
  • 1905 Debaixo das rodas (Unterm Rad), romance
  • 1907 Diesseits, cinco contos
  • 1908 Nachbarn, cinco contos
  • 1910 Gertrud, romance
  • 1911 Unterwegs, poesias
  • 1912 Umwege, contos
  • 1913 Aus Indien
  • 1914 Rosshalde
  • 1915 Musik des Einsamen, poesias
  • 1915 Knulp, romance
  • 1917 Demian, romance
  • 1920 Blick ins Chaos, Aufsätze
  • 1920 O Último Verão de Klingsor (no originalKlingsors letzter Sommer)
  • 1922 Sidarta (romance)  (Siddhartha), romance
  • 1923 Trost der Nacht, poesias
  • 1927 O Lobo da Estepe ou O Lobo das Estepes  (Der Steppenwolf), romance
  • 1928 Betrachtungen
  • 1928 Krisis, diário
  • 1930 Narciso e Goldmund, (no original Narziss und Goldmund), romance
  • 1931 Weg nach Innen, quatro contos
  • 1937 Neue Gedichte
  • Correspondência com Romain Rolland
  • 1943 O Jogo das Contas de Vidro, romance
  • 1946 Dank an Goethe
  • 1946 Der Europäer, considerações
  • 1946 Sobre a guerra e a paz
  • 1952 1957 Obras Compiladas, 7 volumes
  • Contos
  • Este lado da vida, romance
  • O livro das fábulas, romance
  • Pequeno mundo
  • 1955 Beschwörungen, prosa tardia
  • 1958 Viagem ao Oriente  (no original Die Morgenlandfahrt), romance
  • O homem de muitos livros


quarta-feira, 27 de abril de 2016

Biografia de Hermann Hesse


         Nascido no seio de uma família muito religiosa, filho de pais missionários protestantes (pietistas, como é típico da Suábia) que pregaram o cristianismo na Índia, Herman Hesse estudou no seminário de Maulbronn, mas não seguiu a carreira de pastor como era a vontade de seus pais. Tendo recusado a religião, ainda adolescente, rompeu com a família e emigrou para a Suíça em 1912, trabalhando como livreiro e operário. Acumula, então, uma sólida cultura autodidata e resolve dedicar-se à literatura.
         Travou contacto com a espiritualidade oriental a partir de uma viagem à Índia em 1911 e com a psicologia analítica por meio de um discípulo de Carl Gustav Jung, em decorrência de uma crise emocional causada pela eclosão da Primeira Guerra Mundial. Estas duas influências seriam decisivas no posterior desenvolvimento da sua obra.
         Em 1946, recebeu o Prémio Goethe e, passados alguns meses, o Nobel de Literatura.
         Faleceu em 09 de Agosto de 1962 e foi sepultado no cemitério de San Abbondio em Montagnola, perto de Lugano, onde Hugo Ball também foi enterrado.



terça-feira, 26 de abril de 2016

Texto de opinião

Eu gostei do conto “O vagabundo na esplanada”, de Manuel da Fonseca, porque o texto é muito bom e narra uma história dramática sobre um homem pobre, que é discriminado pela sociedade. Eu penso que as pessoas são injustas, porque o homem pobre era solitário. Por isso, eu recomendo a leitura deste conto a todas as pessoas. É preciso aprender a respeitar a diferença.


Resumo
O Vagabundo na esplanada

O vagabundo era um homem pobre, que andava na rua, tinha cerca de cinquenta anos, olhos azuis, era baixo e vestia uma roupa muito velha e gasta, mas limpa.
Nos Restauradores, o homem viu uma esplanada e sentou-se descontraidamente numa mesa, mas as pessoas acharam-no estranho, pobre, não gostaram do aspeto dele e, por isso, chamaram o empregado da esplanada para expulsar o vagabundo daquele espaço.  Então, o funcionário da esplanada dirigiu-se ao vagabundo e disse-lhe que ele não podia estar ali, porque era reservado o direito de admissão.

Então, o homem pobre disse que não conhecia esse direito, olhou para as pessoas que estavam à sua volta e inverteu a situação, dizendo que essas pessoas eram estranhas, mas que podiam ficar, e pediu calmamente uma cerveja fresca ao empregado, como se o assunto não lhe dissesse respeito.

quinta-feira, 7 de abril de 2016

O Vagabundo na Esplanada - Manuel da Fonseca


O vagabundo, de mãos nos bolsos das calças, vinha, despreocupadamente, avenida abaixo.
Cerca de cinquenta anos, atarracado, magro, tudo nele era limpo, mas velho e cheio de remendos. Sobre a esburacada camisola interior, o casaco, puído nos cotovelos e demasiado grande, caía-lhe dos omboros em largas pregas, que ondulavam atrás das costas ao ritmo lento da passada. Desfiadas nos joelhos, muito curtas, as calças deixavam à mostra as canelas, nuas, finas de osso e nervo, saídas como duas ripas dos sapatos cambados. Caído para a nuca, copa achatada, aba às ondas, o chapéu semelhava uma auréola alvacenta.
Apesar de tudo isso, o rosto largo e anguloso do homem, de onde os olhos azuis-claros irradiavam como que um sorriso de luminosa ironia e compreensivo perdão, erguia-se, intacto e distante, numa serena dignidade.
Era assim, ao que se via, o seu natural comportamento de caminhar pela cidade.
Alheado, mas condescendente, seguia pelo centro do passeio com a distraída segurança de um milionário que obviamente se está nas tintas para quem passa. Não só por educação mas também pelos simples motivo de ter mais e melhor em que pensar.
O que não sucedia aos transeuntes. Os quais, incrédulos ao primeiro relance, se desviavam, oblíquos, da deambulante causa do seu espanto. E à vista do que lhes parecia um homem livre de sujeições, senhor de si próprio em qualquer circunstância e lugar, logo, por contraste, lhes ocorriam todos os problemas, todos os compadrios, todas as obrigações que os enrodilhavam. E sempre submersos de prepotências, sempre humilhados e sempre a fingir que nada disso lhes acontecia.
Num instante, embora se desconhecessem, aliviava-os a unânime má vontade contra quem tão vincadamente os afrontava em plena rua. Pronta, a vingança surgia. Falavam dos sapatos cambados, do fato de remendos, do ridículo chapéu. Consolava-os imaginar os frios, as chuvas e as fomes que o homem havia de sofrer. No entanto alguém disse:
– Devia ser proibido que indivíduos destes andassem pela cidade.
E assim resmungando, se dispersavam, cada um às suas obrigações, aos seus problemas.
Sem dar por tal, o homem seguia adiante.
Junto dos Restauradores, a esplanada atraiu-lhe a atenção. De cabeça inclinada para trás, pálpebras baixas, catou pelos bolsos umas tantas moedas, que pôs na palma da mão. Com o dedo esticado, separou-as, contando-as conscienciosamente. Aguardou o sinal de passagem, e saiu da sombra dos prédios para o sol da tarde quente de Verão.
A meio da esplanada havia uma mesa livre. Com o à-vontade de um frequentador habitual, o homem sentou-se.
Após acomodar-se o melhor que o feitio da cadeira de ferro consentia, tirou os pés dos sapatos, espalmou-os contra a frescura do empedrado, sob o toldo. As rugas abriram-lhe no rosto curtido pelas soalheiras um sorriso de bem-estar.
Mas o fato e os modos da sua chegada haviam despertado nos ocupantes da esplanada, mulheres e homens, uma turbulência de expressões desaprovadoras. Ao desassossego de semelhante atrevimento sucedera a indignação.
Ausente, o homem entregava-se ao prazer de refrescar os pés cansados, quando um inesperado golpe de vento ergueu do chão a folha inteira de um jornal, e enrolou-lha nas canelas. O homem apanhou-a, abriu-a. Estendeu as pernas, cruzou um pé sobre o outro. Céptico, mas curioso, pôs-se a ler.
O facto, de si tão discreto, pareceu constituir a máxima ofensa para os presentes. Franzidos, empertigaram-se, circunvagando os olhos, como se gritassem: "Pois não há um empregado que venha expulsar daqui este tipo!" Nas caras, descompostas pelo desorbitado melindre, havia o que quer que fosse de recalcada, hedionda raiva contra o homem mal vestido e tranquilo, que lia o jornal na esplanada.
Um rapaz aproximou-se. Casaco branco, bandeja sob o braço, muito senhor do seu dever. Mas, ao reparar no rosto do homem, tartamudeou:
– Não pode...
E calou-se. O homem olhava-o com benevolência.
– Disse?
– É reservado o direito de admissão – tornou o rapaz, hesitando. – Está além escrito.
Depois de ler o dístico, o homem, com a placidez de quem, por mera distracção, se dispõe a aprender mais um dos confusos costumes da cidade, perguntou:
– Que direito vem a ser esse?
– Bem... – volveu o empregado. – A gerência não admite... Não podem vir aqui certas pessoas.
– E é a mim que vem dizer isso?
O homem estava deveras surpreendido. Encolhendo os ombros, como quem se presta a um sacrifício, deu uma mirada pelas caras dos circunstantes. O azul-claro dos olhos embaciou-se-lhe.
– Talvez que a gerência tenha razão – concluiu ele, em tom baixo e magoado. – Aqui para nós, também me não parecem lá grande coisa.
O empregado nem podia falar.
Conciliador, já a preparar-se para continuar a leitura do jornal, o homem colocou as moedas sobre a mesa, e pediu, delicadamente:
– Traga-me uma cerveja fresca, se faz favor. E diga à gerência que os deixe ficar. Por mim, não me importo.

"O Vagabundo na esplanada", in "Tempo de Solidão", Manuel da Fonseca.


Manuel da Fonseca


         Manuel Lopes Fonseca, mais conhecido como Manuel da Fonseca, nasceu em Santiago do Cacém, no dia 15 de outubro de 1911 e faleceu em Lisboa, no dia 11 de março de 1993. Foi um escritor (poeta, contista, romancista e cronista) português. 
         Após ter terminado o ensino básico, Manuel da Fonseca prosseguiu os seus estudos em Lisboa. Estudou no Colégio Vasco da Gama, Liceu Camões, Escola Lusitânia e Escola de Belas-Artes. Apesar de não ter sobressaído na área das Belas-Artes, deixou alguns registos do seu traço, sobretudo nos retratos que fazia de alguns dos seus companheiros de tertúlias lisboetas como é o caso do de José Cardoso Pires. Durante os períodos de interregno escolar, aproveitava para regressar ao seu Alentejo de origem. Daí que o espaço de eleição dos seus primeiros textos seja o Alentejo. Só mais tarde e a partir de Um Anjo no Trapézio é que o espaço das suas obras passa a ser a cidade de Lisboa.
         Membro do Partido Comunista Português  (PCP), Manuel da Fonseca fez parte do grupo do Novo Cancioneiro e é considerado por muitos como um dos melhores escritores do neo-realismo português. Nas suas obras, carregadas de intervenção social e política, relata, como poucos, a vida dura do Alentejo e dos alentejanos.
         A sua vida profissional foi muito díspar, tendo exercido nos mais diferentes setores: comércio, indústria, revistas, agências publicitárias, entre outras.

         Era membro da Sociedade Portuguesa de Escritores, quando esta atribuiu o Grande Prémio da Novelística a José Luandino Vieira pela sua obra Luanda, o que levou ao encerramento desta instituição e à detenção de alguns dos seus membros na prisão de Caxias, entre os quais Manuel da Fonseca. 


                                              Bibliografia

       

                                                  Curiosidade

"Seara de vento", Manuel da Fonseca


·         A obra que Manuel da Fonseca escreveu vai ser adaptada por Sérgio Tréfaut para o cinema e as filmagens já arrancaram. Entre os concelhos de Beja, Moura e Serpa. Tanto o livro, como o filme, que terá o mesmo nome, são inspirados em factos reais, que aconteceram em Trindade, em 1932, e que ficaram inscritos na história do País como “A tragédia de Beja”. Mas a versão de Manuel da Fonseca e a deste argumento, da autoria do realizador que mostrou a região ao mundo através do documentário “Alentejo, Alentejo”, enquadra-se nos anos 50. O “Diário do Alentejo” esteve a acompanhar as filmagens que decorreram no monte isolado de Valmurado, no casebre da família, e assistiu à gravação das cenas que envolvem Palma, Júlia, Amanda Carrusca, João Carrausca, Mariana e Bento. Começou a ser filmada a história que Sérgio Tréfaut apelidou “de orgulho e dignidade”. Uma história alentejana, que afinal é universal e, por isso, do mundo. 

      " Bruna Soares, "Diário do Alentejo", 22/03/2016

terça-feira, 5 de abril de 2016

As minhas férias da Páscoa


        As minhas férias da Páscoa foram boas. Às vezes, fiquei em casa mas também saí com um amigo.
        O meu amigo chama-se José Santos, é baixo, tem os olhos escuros, é magro e tem o cabelo grande. Eu e o José fomos passear nas ruas de Moura. O tempo esteve bom, sempre com o céu limpo, durante as férias, porque começou  a primavera.
        O meu monte está muito bonito, poderia dizer perfeito, porque desabrocharam todas as plantas e a minha árvore está a ficar com folhas verdes.
        Estive com os meus pais. A minha mãe tem  uma estatura média, os olhos escuros,  é magra e tem o cabelo encaracolado. O meu pai também tem uma estatura média, tem pouco cabelo, tem os olhos escuros e é forte, porque só faz exercício físico no verão.         
           Durante as férias, fui trabalhar no campo com os meus pais. Nos próximos tempos, quero limpar a piscina e temos de comprar os produtos necessários para a água.

        Eu e a minha mãe fomos passear no campo e as férias foram ótimas, mas passaram muito depressa!